Fonte: O Globo | 7 de maio de 2011
Recentemente, em visita aos imigrantes tunisianos impedidos de entrar na França, a candidata à Presidência Marine Le Pen disse com toda franqueza: "Vocês não cabem na França." Alguns anos atrás, declaração como esta seria repudiada por ilógica e imoral. Hoje é aceita como lógica e positiva eleitoralmente. O que mudou desde então foi a constatação de que não há espaço para todos no mesmo padrão de consumo dos ricos, seja da França, do Brasil ou da própria Tunísia. Aliás, a fuga dos tunisianos e demais imigrantes dos países pobres acontece porque os ricos de seus países também pensam como a Sra. Le Pen e empurram seus pobres para o mundo dos ricos no exterior.
Há 200 anos nossa civilização se baseia no casamento de três propósitos: crescimento econômico, justiça social e democracia política. De repente, a percepção da crise ecológica, do aquecimento global, da escassez de recursos, enfim, dos limites ao crescimento econômico ameaçam este casamento. A continuação do crescimento para todos inviabilizará o futuro para onde navega, há 200 anos, a Nossa Barca chamada Terra sob a égide da civilização industrial. Não há espaço para todos consumirem os bens dirigidos aos consumidores de alta e média renda. As projeções mostram que este rumo levará ao naufrágio da Barca. Já se percebe isso pelas crises, não apenas ecológica, mas também financeira e fiscal que impedem manter o bem-estar adquirido por meio de financiamentos e por depredação natural. Esse rumo levará inevitavelmente ao naufrágio da barca da civilização industrial.
Há outras duas alternativas para salvar este rumo. Continuar no mesmo rumo, mas excluindo do barco 2/3 da humanidade. Esta alternativa está representada no filme "2012", no qual, diante de uma catástrofe ecológica, constroem-se barcas para salvar as pessoas que podem comprar passagens para o limitado número de lugares. O filme é metáfora para o discurso da candidata à Presidência da França.
Há uma terceira alternativa, que consiste em mudar o rumo da Barca. Para isso são necessárias mudanças estruturais, ideológicas e até mesmo mentais, nos conceitos, sentimentos e desejos já arraigados no imaginário da população. Seria necessário redefinir o progresso, reorientar o crescimento econômico de bens materiais privados de curta duração, sem consideração ecológica, para bens públicos culturais de longa vida, comprometidos com o equilíbrio ecológico. Seria preciso redefinir também a justiça social porque, neste novo rumo, não se pode manter a ilusão mentirosa de que a renda e o consumo podem crescer sem limite para todos. Alguns dos benefícios conquistados por assalariados, tais como o automóvel privado e a precoce aposentadoria, não serão mais viáveis no longo prazo para todos. A própria democracia terá que ser redefinida: sua prática local e de curto prazo terá de ser limitada por decisões internacionais. A democracia não se faria pela vontade própria e soberana dos eleitores de cada país, sem levar em conta a vontade dos vizinhos em toda a Nossa Barca Terra.
Em junho de 2012, durante a reunião "Rio+20", o mundo terá uma chance rara de buscar o rumo para a Nova Barca, dependendo da representatividade dos chefes de estado e governos que comparecerem, da agenda que será discutida e dos compromissos que serão firmados.
Ninguém tem mais responsabilidade para o êxito ou fracasso desta reunião do que a presidente Dilma. Para isso, ela deve usar sua liderança política no sentido de convencer a vinda de líderes mundiais ao Brasil, oferecer infraestrutura eficiente e liderar a elaboração de uma Carta do Rio ao Mundo, reafirmando que a Nossa Barca é de todos e definindo as linhas para o novo rumo a ser seguido - a construção do desenvolvimento alternativo.
Pena que isso pode não passar de um sonho, porque a população não parece acreditar nos riscos do progresso, nem deseja mudar o rumo da Barca. Além disso, o Brasil parece mais preocupado em saber quem fará mais gols em 2014, quem saltará mais alto em 2016, do que quantos sobreviverão a partir das decisões tomadas em 2012.
CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).
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